Vanessa da Mata diz estar adorando descobrir seu bumbum

Vanessa da Mata acha que estamos buscando um amor que não existe mais. Que o amor idealizado acabou. A constatação vem não só de uma mulher calejada por desilusões como de uma cantora e compositora expert em traduzir romances e DRs em suas letras. Da dona de um grande hit sobre o assunto, “Boa sorte”, canção mais tocada do cantor americano Ben Harper (seu parceiro na faixa) no mundo.

Se o bem-querer anda em crise existencial, segue inspirando essa mato-grossense de 48 anos que lançou, sexta-feira, o single “Rindo com você”, sobre saudade e reencontro. É um excedente da produção do disco “Vem doce”. Lançado ano passado e indicado como Melhor Álbum de Música Popular Brasileira ao Grammy Latino, traz participações de João Gomes, L7nnon, Marcelo Camelo, entre outros.

A música dá alegria e bons números a Vanessa. Ela soma 3,9 milhões de ouvintes mensais no Spotify e 385 milhões de visualizações no YoutTube. Mas a cabeça agitada da artista, que sofre de insônias terríveis, esparrama sua criatividade também por outras praias. Caso da pintura e da literatura (é autora do romance “Filha das flores”).

Prestes a embarcar em turnê internacional e com show marcado para o dia 9 de março no carioca Qualistage, Vanessa, que mora em São Paulo, conversou com o GLOBO no Rio.

Falou sobre o lugar da mulher na composição, disse que suas fotos de biquíni nas redes são reflexo de uma mulher feliz com seu corpo e contou como a adoção de três crianças mudou sua visão de mundo. Também revelou que exercer a negritude por meio do cabelão, sua marca registrada, lhe muito dá prazer, mas incomoda muita gente:

– Já fui xingada várias vezes na rua – revela.

“Vem Doce” é o segundo disco seu que você produz. O processo de se tornar ainda mais dona do seu trabalho te fez ganhar mais autoralidade e identidade musical?

Sim. Apesar de achar que sempre estive presente e ativa. Faço música desde meus primeiros discos. Se você é intérprete, fica mais na mão do produtor, mas como compositora vem de mim o tem de marcante, frases de baixo inteiras… Estar na direção dá pratica e menos embate. Porque, às vezes, o produtor quer botar algo que está na moda ou acha que é um conceito novo, mas que não tem nada a ver com você.

Tem composto tanto que “Rindo com você” não coube no álbum…

Sempre compus muito. Sou compulsiva, cabeça inquieta. É difícil dormir, meditar. Tenho uma insônia horrorosa. Para a música, sou romântica, positiva. Acho que ela contrapõe o que sou na vida. Séria. Brincalhona e com uma criança dentro também. Mas sou velha dentro de casa. A música é um lado que gosto porque me traz liberdade, o lúdico, a poesia, menos concreto. Fico iludida numa magia que talvez tenha perdido cedo por ter saído de casa com 14 anos, sem ninguém. Isso dá uma endurecida.

Neste disco, você se mostrou cronista de situações cotidianas, como a “amiga fofoqueira”, a “vizinha enjoada”… E também trouxe uma crítica social mais aguda. São aspectos, até então, pouco explorados na sua carreira.

Perdi muitas pessoas na pandemia. Vi situações de desespero. Isso mexe com a gente. Já coloquei a coisa social em outros discos, mas com a voz mais branda. Com os anos, a gente se ensina. Crônicas eu sempre fiz desde “Essa boneca tem manual”, “Senhora na janela”. Mas acho que notaram mais neste disco porque canto sobre a vizinha enjoada, a amiga fofoqueira. Talvez tenha menos romance… Ficou mais farto no sentido de atitude de composição.

Você foi casada dez anos e anunciou um segundo casamento que se dissolveu em meses de relação. É preciso ter sofrido muito para adquirir essa sua propriedade toda ao cantar o amor?

Sou aquariana convicta. Mas quando entro na esfera do sentimento é caótico, detesto. Hoje, se tem como passar longe da paixão, eu passo. Acho horrível, desencorajador. Ainda mais agora, com essa facilidade de não se ter uma relação, comprometimento, as armadilhas de viver num país de feminicídio. Tudo é extremamente perigoso. Mas tenho um lado romântico forte. Desde as religiosidades, até acreditar no ser humano, na minha vestimenta, na escrita, na poesia, no encaracolar das coisas. Sou rococó.

Mas ainda acredita no amor diante das relações amorosas contemporâneas conturbadas, das pesquisas que dão conta que jovens não namoram e nem transam?

Acredito piamente. Só não te digo sendo uma especialista porque, que de tanto sofrer, não sou especialista de nada (risos). Sou especialista nas desilusões. Mas isso caleja, dá praticidade. Tive uma relação feliz de 10 anos (com o fotógrafo Geraldo Pestalozzi), foi ótimo, temos três filhos.

Mas acho dificílima a relação entre pessoas diferentes. Sou livre, amo minha liberdade. E sou nascida de uma relação péssima entre meus pais. Não romantizo a instituição casamento. É uma coisa quase impossível. Pra manter esse romance também é quase impossível. Tem que ser cada vez mais louco, no sentido bom da coisa, para inventar encantamentos. A criatividade de uma pessoa casada há anos é muito maior que a minha (risos). É muito trabalho!

Idealizamos demais as relações?

Idealizar: esse é o problema. Sei porque eu já vivi isso. O amor foi reformulado. Mudou várias vezes, a cada geração entra num casulo. A gente fica buscando o amor que não existe mais. Temos que reformular para viver junto com outra pessoa. O mais difícil é atingir nossas expectativas. O romantismo é uma invenção. Colocamos muita expectativa no outro, inventamos uma pessoa na hora da paixão.

No começo, está junto porque a química é forte ou porque se apaixona pela mente, no meu caso. Com o tempo, isso vai se desgastando. Estamos menos tolerantes, polêmicos com as diferenças, sem conseguir lidar, se ofendendo cada vez mais, sem saber assumir erros e deixar o ego de lado.

O que a gente passava pano um tempo atrás, não passa mais. Então, estamos usando copos descartáveis. Não acredito no “pra sempre”. Acho que o amor de agora é a cara metade, a metade da laranja… Aí, com a experiência, vamos vai vendo o que é mais legal para si.

Eu amo a reação das suas primas que, quando contou que ia se casar pela segunda vez (com o ministro do Tribunal de Contas da União, Bruno Dantas), te acusaram de trair “o movimento das solteiras felizes autossuficientes”. E sua tia querendo saber quem era o “milagreiro”? Tudo isso, ilustra uma solteirice convicta. Mas o que aconteceu quando anunciaram o casamento e terminaram em seis meses?

Não rolou, mas foi ótimo enquanto durou. Acho que Vinicius (de Moraes) ao contrário também funciona muito bem pra gente (risos). Fui a traidora de todas elas, porque estimulava isso. Fui a primeira a dizer que não queria casar, que queria ser livre na vida. E já estava indo para o segundo casamento… Mas, também, não perdurar em nenhum era, de certa forma, uma libertação, né? (risos).

Seria o amor próprio o mais importante de todos?

Total. Não tem como como abrir mão do seu amor próprio. Falei ontem para um filho meu, que estava passando mal de amor. Adolescente, né, parece que que vai morrer… Falei: “Antes de todo mundo, você precisa pensar em você. Não busca no outro o que está dentro de você. O amor de fora não vai te adiantar em nada, não vai conseguir nunca sanar esse buraco existencial”.

Mas isso a gente só aprende com os anos…

Alguém falando você já começa a raciocinar. Não falaram pra gente. Ainda mais para a mulher. Sou de uma geração cujos pais tiveram relações muito unilaterais. A mulher fazendo tudo por um casamento. A pergunta era: “Quantos anos de casamento?”. A resposta: “50”. Aí eu digo: “Nossa, 50 anos de sacrifício dela para conseguir manter!”. Porque se fizesse a mesma coisa que os homens…

Não conheço um casal da idade dos meus pais que a parte masculina tenha sido legal. Tenho experiência boa, diferente do padrão que tive em casa. E isso, para mim, foi maravilhoso. Agora, está no DNA da mulher brasileira o trauma. E também a necessidade de buscar o próprio prazer, o próprio acontecimento, ser dona de si. Difere do mundo inteiro. A gente ganha apelidos, pessoas menosprezam, mas a mulher brasileira não espera o cara, ela procura e faz o gozo do seu alcance.

Sempre foi livre sexualmente?

Acho que depois dos 40 é o mais legal. Não me sinto tão bem como depois dos 40, 45 anos. A idade da loba é maravilhosa, cheia de tesão, autopoder, descobertas. Me sinto bem com meu corpo, me acho linda, gostosíssima, desculpa (risos). É um negócio que eu não sentia antes. Estava o tempo todo tentando alcançar um perfeccionismo intelectual. Não era uma estética de figura. Sempre fui muito estranha na minha família. Não alisava o cabelo, era alta demais (1m80cm). Estava sempre dependendo de um aval. Essa história de se nutrir é perfeita.

À medida em que conquistou essa intelectualidade, ganhou licença de si mesma para ser também uma grande gostosa?

O que mais me satisfez a vida inteira foi escrever uma boa letra. Ter um conceito dentro da música. Nunca quis ser super popular. Minha ideia de música era a que trouxesse algum agrado intelectual, novidadeiro de letra, de ritmo, dessa miscigenação musical, da coisa do tradicional brasileiro com o pop da música genuína da MPB.

Mas agora estamos nessa época de novinhos, né? É engraçado… Muitos meninos estão me procurando. É a coisa mais maravilhosa. Acho que tem muito agrotóxico na cabeça dos homens mais velhos (risos). E os novinhos estão maravilhosos, leves, brincalhões, esperançosos.

Você dá ideia?

Lógico! Também sou filha de Deus (risos).

O que foi fundamental para adquirir essa liberdade num mundo patriarcal em que mulher é criada para satisfazer?

Sempre indagar por quê. Se não perceber uma ideia legítima de que aquilo é para a sobrevivência hoje… Tipo, minha filha: não há como criá-la igual aos meninos. É ela quem vai engravidar, quem estará sozinha, normalmente, que pode ser sequestrada, estuprada normalmente. Apesar de ter muitos casos de estupro de homens heterossexuais. Eles não denunciam por vergonha e depois vira um problema gigante.

Mas acho que minha atitude com relação a mim mesma desse libertar e ter meu próprio prazer de viver, de ser mulher, que adoro. Os anos me trouxeram essa libertação e a coisa de sempre questionar. Por que tenho que usar isso? Não tem ditado imbecil que passe por mim e seja repetido sem ser questionado. Não suporto “briga de marido e mulher não se mete a colher”… Esse tipo de coisa que um cara que batia inventou e não faz nenhum sentido, a não ser para ele… Essas coisas tradicionais que vão para um lado que aprisione uma pessoa e liberte outra.

Isso, porque não foi sempre assim. Acho que a situação de você se sentir bem vem mesmo com os anos. Primeiro, tem a adolescência horrorosa, em que você não é nem criança nem adulto, parece um ET. Só vai voltar a se acostumar com você de novo com 30 e poucos. E aí vai se gostar demais. A idade da loba também é maravilhosa, cheia de tesão, autopoder, descobertas.

Como vê o atual cenário de cantoras pop no Brasil. Já vi você criticar uma certa generalização da exploração do corpo…

Na verdade, são linguagens diferentes, música cuja sexualidade é importante para a venda. Não tenho nada contra, mas vejo muita gente talentosa que, vestida, faria tanto sucesso quanto. É uma linguagem de moda, do que é considerado jovem para algumas pessoas e que, pra mim, nunca foi. Eu tinha 12 anos e adorava vestir longos. Andar sem sutiã num vestido delicioso, para mim, é liberdade.

Acho mais jovem do que qualquer outra coisa que te amarra numa imagem, em algo que te movimenta para, daqui a pouco, ter um etarismo. Porque dentro disso, você vai ter que se reinventar o tempo todo para ficar jovem, para manter aquele visual ligado a 20 e poucos anos. São linguagens claras usadas para ganhar dinheiro. Aí chega uma outra nova que faz a mesma coisa e te substitui. Tudo levado pelo marketing, sem personalidade, essa loucura de buscar aceitação na internet. Vejo muita gente querendo ser famosa para suprir esse vazio existencial.

Você tem causado nas redes postando fotos de biquíni, mostrando uma mulher feliz com e dona de seu corpo.

Estou cada vez mais feliz com meu corpo. De repente, eu vi que tinha uma bunda grande e comecei a me curtir. Minha bunda está cada vez maior, gosto dela e passei a notá-la mais. Outro dia, brinquei que vou ter que comprar um carro e uma casa nova para a bunda que não cabe mais. Comecei a me curtir, fiz umas fotos que ficaram ótimas e tive a generosidade de compartilhar (risos). Achei engraçado, diferente, uma Vanessa que eu não conhecia. É libertador.

Mas a exposição do corpo nas redes marca uma mudança na sua comunicação com o público…

Não é algo que planejei ou estou fazendo para chamar atenção. Até porque, toda vez que posto minha bunda perco seguidor. Da última vez, perdi 5 mil. Às vezes, não entendem: “Vanessa da Mata, aqueles vestidos longos, essa bunda? Tô no lugar errado”. Claro que dependo disso, é meu trabalho. Mas acaba arredondando um público mais seu. Você tem ali pessoas que não estão por uma coisa ou outra, elas te entendem, aceitam. Ou respeitam.

Faço isso porque me sinto muito feliz com o meu corpo, comigo. Tudo é próprio, aceito, bem resolvido. Sair desse lugar em que a gente fica muitos anos, em busca de aceitação, de se provar, é muito bom. Poder criar e colocar nas redes na hora… Tenho um baú cheio de cadernos e, às vezes, não só boto no caderno como mando direto para as redes. Isso traz algo fresco, atual.

Os seus 1,80 já foram uma questão. Uma vez, você tuitou que ri quando leva cantada de homem muito mais baixo, “que pareceria um boneco de Olinda levando um minicraque puxado pelo mindinho”…

Tive um monte de problema com homem baixinho por causa disso (risos). Você não faz ideia… Eu falei: “Gente, tenho problema com a minha altura e não com a sua”. Sou muito paquerada por baixinhos. Engraçado, acho que eles têm uma autoestima maravilhosa.

Você cresceu quebrando o machismo em Alto Garças, cidade pequena do Mato Grosso, onde você nasceu. Andava de moto, era chamada de “Maria João”, por “não brincar de fogãozinho”…

Eu filha única, uma criança muito solitária, vivia com a minha avó. Depois, fiquei muito doente. Perdi um rim numa época em que não existia transplante e vivia numa constante ameaça de morte, indo para hospitais. Durante anos não conseguia entrar num hospital sem ter pânico. As doenças me sensibilizaram e me ensinaram a ser mais forte.

Credita as doenças à tristeza de uma família complicada?

Com certeza, várias histórias dentro de uma casa conturbada. Minha adolescência foi praticamente num leito, com uma dor renal terrível. Até hoje… Já cantei com pedra saindo do rim. Não sentia de tanta dor que tive. Só sei quando meu ouvido inflama quando tampa. Adquiri uma resistência enorme a dor.

Na época, estava perdendo outro rim e eles fizeram uma cirurgia rápida. Isso me ajudou a ler a obra inteira de Machado de Assis com 12 anos. Descobri autores latinos interessantes. Isso era difícil na época, minha cidade não tinha biblioteca. As pessoas me emprestavam. Pegava vários livros de cursinhos, fui para um lado místico, astrologia, tarô…

Mas tarde o candomblé entraria na sua vida…

Muito mais tarde. Fui criada na igreja católica, era a rezadeira, a puxadora de novenas. Ia com a minha avó. Uma época, eu queria ser freira, mas o padre era horrível, péssimo… Escapei dele muitas vezes e ele deu uma sujada no que a igreja era para mim.

Quando fiz 40 anos, a espiritualidade veio forte e aí entendi a coisa da minha avó ser benzedeira. Minha mãe era médium e não desenvolveu porque está na igreja católica e isso, para eles, é mais diabólico. Isso também veio a ser uma experiência interessante. Só que aí fui fechar minha espiritualidade no candomblé. O que foi um adianto na minha vida.

Voltando à composição. Como vê o lugar da mulher na composição brasileira, universo que sempre foi tão masculino….

A maneira de a mulher fazer música é completamente diferente do homem. Não estou falando de Chico Buarque, uma exceção. Mas a maneira de ver a vida, de transcrever. A gente nunca teve tanta liberdade, apesar de tantas repressões. Mesmo assim, falar é uma coisa, compor é muito mais transgressor. É mais profundo, você é protagonista de milhares de pessoas cantando. Nenhum homem fez isso para você. Então, é muito poderoso. É uma libertação interna de muito trabalho, aberturas de chaves, de autoconhecimento e gozo. Uma conquista gigantesca e única que é sua.

A gente cantava o que os homens compunham. De que maneira a conquista desse espaço pelas mulheres impactaram nos assuntos abordados?

É essencial o ponto de vista feminino para a música. Nossas necessidades, o masculino e feminino são totalmente diferentes, essa empatia do filho, do ser cis ou não, todos os gêneros possíveis. A mulher entende mais essas coisas, tem uma sensibilidade alterada. Cria uma criatura, isso é acolhedor de mundo inteiro. A empatia é longeva e multifacetada, a lógica da mulher, a escrita, a poesia, as cores são diferentes.

E existe uma coisa antiga de calar a mulher de várias maneiras, de a gente não poder falar muito. Cada vez mais, a gente tem a libertação de poder falar o que acha. A composição, poder contar histórias próprias, colocar no papel, é uma coisa moderna, de agora. Sempre houve mulheres transgressoras como Chiquinha Gonzaga, Rita Lee, Dolores Duran, que passaram por dores horríveis para ter esse lugar de libertação da fala junto com a melodia, que é esse sentimento todo.

Enfrentou obstáculos?

Com certeza. Acho que até hoje existe certa dúvida da mulher compositora. Isso é muito novo. Só 5% dos direitos autorais são das mulheres. Estamos engatinhando. Todas que vieram antes foram transgressoras. A mulher que não precisa ser arranhar, se matar, se chicotear, cair num lugar de dor para compor já é um terceiro momento.

Ao mesmo tempo, estamos num momento de botar o dedo na ferida, falar sobre questões que nos atravessam como machismo, feminicídio…

Sim, mas a fala é uma coisa, composição é outra. Vejo mulheres ancoradas em parcerias com dois caras, ou essas turmas de 10, 15 pessoas. Isso traz para a composição uma cara de nada. Você não reconhece mais uma letra de Paulo César Pinheiro, uma melodia de não sei quem. Pulverizou muito a composição. É uma coisa para ganhar dinheiro ou ainda muito ancorada no masculino.

É difícil ver uma música inteira de uma mulher que seja capaz de atingir muita gente ou que seja fundamental no dizer, na poesia, no novidadeiro. Sempre treinei fazer coisas sozinha, minha compulsividade me trouxe uma coisa de não colocar mito nenhum, não fazer com que isso fosse uma tarefa difícil. Para mim, é como chegar e falar: “Olha, sabe a minha vizinha enjoada? Se tiver com insônia pega uma erva, faça não sei o que…”.

Sempre foi um lugar de cura para você também, né?

Super cura. Fui doente, precisei me curar. Quando não aguentava mais as dores e as doenças, larguei uma frase para mim mesma que eu acho que me curou: “Não quero mais adoecer, acabou”. A partir daquilo, minha vida mudou completamente, foi um basta meu. Já que eu tenho que viver essa vida, vou viver da melhor forma possível, sobreviver a tudo.

Mas você é mulher e ser mulher é administrar BOs. Você, por exemplo, sofreu algumas tentativas de estupro em assaltos…

Sofri dez assaltos e duas tentativas de estupro. Na verdade, sofri tentativas a vida inteira. Aquele padre que eu falei… O vizinho. Mas minha avó sempre chegava na hora certa, era ligadaça. Falava para ter cuidado, para não ir sozinha. Isso me traumatizou muito. Principalmente, a coisa com a igreja.

Tem que ter muito cuidado. Nunca deixei minha filha dormir na casa de amiguinho. Ela é louca comigo nessas coisas. Porque é nessa hora que a coisa acontece. É no Natal, aquele tiozinho que você acha fofo, que ama as crianças e, quando você vê, já foi. Fui muito esperta também. Fingi que estava passando mal, que tinha problema no coração. E me salvei.

Não tem como conversar com Vanessa da Mata sem falar sobre esse seu cabelo maravilhoso, marca registrada, resultado da miscigenação da sua família. Sempre o amou? Como é questão da negritude para você?

Minha mãe alisou, o que gerou um questionamento meu. “Por que devo parecer com outra pessoa, não posso gostar de mim como sou?” Isso me ajudou. Sou referência para muita gente, criança. Mães me mandam vídeos de filhas cantando: “Olha a minha Vanessinha da Mata”. Minha mãe é negra, meu meu pai é claro, com cabelo encaracolado.

Ninguém me aceitava. Todas as novelas, os apresentadores, pessoas que trabalhavam no banco, todos que eram considerados sérios tinham cabelo alisado.

A busca pela nossa autoestima, com nossos traços, características, é fundamental. Se temos autoestima, não entramos em roubada, em relacionamento errado, não aceitamos qualquer coisa, vamos buscar o mais especial.

Desde criança, numa época que os fabricantes de chapinhas e alisamentos eram bilionários no Brasil, eu já era discordante, achava burro seguir aquilo para agradar. Tentar ser outra pessoa para ser aceita é muita humilhação. Meu cabelo é minha cara, meu corpo, minha alma, minha composição.

Já sofreu violência por causa do cabelo?

Já fui xingada na rua várias vez: “Vai pentear seu cabelo neguinha, não tem escova, não?”. Por gente de todas as cores, não só brancas. Da minha geração, fui a primeira a ter cabelo assim. Era uma petulância. Assim: “Eu não sei muito o que você é. Parda?”. Pardo, pra mim, é papel, detesto. Era a negritude exercida de maneira honrosa e petulante. Eu gostava de ser eu. Isso para muita gente é uma afronta, um tapa na cara. A liberdade ofende. Principalmente os mal resolvidos. A pessoa fala: “Ela não se enxerga? Vou avisar”.

Há pouco tempo, fui a um restaurante em Curitiba. Garçons e pessoas que passavam riram do meu cabelo. É uma coisa brasileira. No exterior, tem velhinha cheia de piercing. Penso que isso vem ditadura. Tem que ser arrumado, não pode ser rebelde em nada, tem que ser padrão, ficar no caixotinho. Também acho que falta de estudo e inteligência.

Acha que as coisas mudaram um pouco desde quando era criança? Está havendo alguma evolução nesse sentido?

Acho que essa força, essa militância precisa realmente chegar para se instaurar de uma maneira natural depois. É pé na porta, se não não muda. Ela é tão agressiva quanto as atitudes do preconceituoso. Mas ele foi livre para fazer isso a vida toda, então, só criou essa necessidade para que haja equilíbrio. Assim como machismo e feminismo. O feminismo só exige igualdade.

Você é mãe de três filhos adotivos (Bianca, 19, Micael, 20, e Felipe, 22) é crítica ferrenha das burocracias da adoção no Brasil. O que tem que mudar de cara?

Os abrigos que têm 50 crianças e duas pessoas cuidando. O que imagina que acontece? Tudo! De abusos de crianças maiores para menores, físicos, sexuais mentais, e de pessoas que não cuidam realmente. É preciso ter educadores, psicólogos. Dizem que a burocracia é para proteger as crianças… É nada! É falta de gente, iniciativa, cuidado. Conheci dois abrigos que tinham 54 crianças e duas mulheres cuidando, uma de dia, outra de noite. As crianças ficam o dia inteiro na televisão e acontece todo o tipo de confusão, abandono. Eu acho que alguém ganha com isso.

A adoção está no DNA da sua família. Sua avó teve sete filhos biológicos e vinte adotivos. E você nunca havia cogitado ser mãe. A adoção mudou sua visão de mundo?

Foi transformador. Apesar de não considerar a maternidade tradicional, sempre fui maternal, mãe de amigas, filhas de amigas, exerci a maternidade de muitas maneiras. Minha música também tem um pouco desse nutrir. Mas a maternidade me provocou num mundo diferente. Já via o mundo com empatia, mas aumentou. Também me deu mais desespero para uma transformação mais rápida das coisas, urgência por uma sociedade mais justa, com menos imposto, em que quem ganha menos consiga ter uma vida mais normal, com menos exploração e abuso no sentido econômico.

É verdade que uma amiga sua fez uma brincadeira de previsão do futuro usando um pêndulo e disse que você seria mãe de trigêmeos?

É verdade! Eu disse que ela estava louca. Anos depois, chegaram os três. Já grandes, né? Minha filha, muito ciumenta, dizia: “Mamãe, você não precisa dar carinho pro Felipe”. Eu respondia: “Preciso, sim, não é porque ele é grande que não precisa”. Hoje, Bianca estuda Cinema, Felipe e Micael fazem teatro. Teatro é bom para jovens, o exercício de ser outra pessoa traz leveza, coloca a raiva no lugar certo, afasta das drogas. Ainda mais hoje com a molecada fazendo besteira, tirando a própria vida por nada.

O fardo, a expectativa é gigante e a bagagem é pouquíssima. A galera não tem a estrutura dos mais antigos. Bagagem de leitura, experiências outras… Focam no celular e não conseguem vivenciar outra vida, ter noção do que outros fizeram para sair de tal confusão. Acho que quando a pessoa consegue tirar férias dela mesma, volta descansada. Quando ela pode experimentar outras situações é como um hospital, um spa, só melhora.

Fonte Jornal O Globo

Deixe um comentário