Ultraprocessado: ‘Não vamos chamar de comida porque não é’

Ultraprocessados

Alimentos ultraprocessados ​​estão por toda parte. Ao longo das últimas décadas, a sua disponibilidade e acessibilidade aumentaram de forma explosiva e intencional, primeiro nos países de rendimento elevado e depois nos restantes. Nos Estados Unidos, e também no Reino Unido, cerca de 60% da ingestão calórica já provém de produtos ultraprocessados. Já no Brasil, nos últimos dez anos, o consumo de alimentos ultraprocessados teve um aumento médio de 5,5%. Outro dado do estudo, divulgado pela Revista de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), feito pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens/USP) também responsável pelo Guia Alimentar para a População Brasileira, mostra que cerca de 20% das calorias consumidas pelos brasileiros vêm de ultraprocessados.

As mensagens sobre esses produtos também proliferam. Em muitas reportagens da imprensa são apontados como os principais responsáveis ​​pelo aumento da obesidade ou da diabetes tipo 2 . Também não faltam influenciadores que defendem o abandono do consumo. Mas o que são alimentos ultraprocessados? E quais são as evidências científicas sobre o seu efeito na saúde?

Que são?

Doces, refrigerantes, biscoitos, nuggets, pratos pré-cozidos, sobremesas lácteas, entre outros. Todos são produtos feitos predominantemente (ou inteiramente) de ingredientes industriais e contendo poucos (ou nenhum) alimento natural. Portanto, costumam apresentar alta densidade calórica (devido à sua quantidade de açúcares e gorduras) e baixa qualidade nutricional (pouquíssima quantidade de proteínas ou micronutrientes). Ou seja, eles não fornecem quase nada, exceto calorias embaladas.

O termo ultraprocessado foi utilizado, pela primeira vez, por Carlos Monteiro em 2009. Atualmente, e na ausência de uma norma legal que estabeleça uma definição específica, a mais aceita (pelo menos no campo da saúde pública) é que do próprio Monteiro e colaboradores. Eles definem produtos ultraprocessados ​​como “formulações industriais produzidas a partir de substâncias obtidas de alimentos ou sintetizadas de outras fontes orgânicas”. E continuam: “Eles normalmente contêm pouco ou nenhum alimento intacto, são preparados para serem consumidos ou aquecidos e são ricos em gordura, sal ou açúcares e pouca fibra alimentar, proteína, vários micronutrientes e outros compostos bioativos”.

Em resumo, os alimentos ultraprocessados ​​são preparações industriais comestíveis elaboradas a partir de substâncias derivadas de outros alimentos. São produtos melhorados para serem atrativos ao paladar e muito convenientes, pois podem ser consumidos em qualquer hora e lugar.

Soma-se a isso sua enorme lucratividade. Os ultraprocessados ​​têm vida útil longa e custo de produção baixíssimo. Na verdade, a produção de alimentos ultraprocessados ​​(por exemplo, bebidas açucaradas) se tornou uma das atividades comerciais mais lucrativas e de crescimento mais rápido. São produtos mais baratos do que os alimentos frescos ou processados ​​e são anunciados através de mensagens enganosas (“ricos em vitaminas”) e acompanhados de alegações que procuram mascarar possíveis danos, para direcionar a procura dos consumidores.

Qual é o seu efeito na saúde?

Graças aos sistemas de rastreabilidade e segurança alimentar, é muito difícil que os alimentos, ultraprocessados ​​ou não, causem danos imediatos à saúde. Exceto algumas gorduras e açúcares de baixa qualidade, que causam danos diretos, mas permanecem não regulamentados devido à interferência da indústria.

Os dados científicos sobre os efeitos nocivos dos alimentos ultraprocessados ​​são claros. Existem centenas de estudos que observaram associação entre o consumo desses produtos e maior risco de obesidade, diabetes, hipertensão, doenças cardiovasculares e também morte prematura. Um editorial, publicado recentemente por Miguel Ángel Royo-Bordonada e Maira Bes-Rastrollo na Gaceta Sanitaria, sintetiza esta evidência.

Além destes efeitos, um estudo recente, realizado com quase 200.000 adultos no Reino Unido, concluiu que os alimentos ultraprocessados ​​também aumentam a mortalidade por certos tipos de câncer, especialmente o de ovário nas mulheres. E este não é o primeiro. No ano passado, uma pesquisa realizada nos Estados Unidos relacionou alimentos ultraprocessados ​​ao câncer colorretal. Somando-se a essas evidências crescentes estão as descobertas sobre saúde mental. Um estudo longitudinal, com acompanhamento de uma década, associou o consumo de alimentos ultraprocessados ​​à deterioração cognitiva em mais de 10 mil adultos no Brasil. Além disso, em 2022, pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), da USP, da Fiocruz e da Universidad de Santiago de Chile realizaram um levantamento (divulgado no periódico American Journal of Preventive Medicine) onde estimou-se que os ultraprocessados podem causar a morte prematura de 57 mil pessoas por ano, superando até mesmo o número de vítimas de homicídio no país (os dados tiveram como base o ano de 2019 onde, de acordo com o Atlas da Violência, o país registrou 45,5 mil homicídios).

Quanto ao mecanismo de ação, existem diversas hipóteses. Por um lado, os danos podem estar relacionados à já referida baixa qualidade nutricional dos ingredientes mais comuns destes produtos: açúcares livres, farinhas refinadas, gorduras pouco saudáveis ​​ou sal. Por sua vez, o consumo de alimentos ultraprocessados ​​pode substituir outros de melhor qualidade nutricional, como alimentos in natura ou menos processados. Há estudos que sugerem hipóteses adicionais, relacionadas com alterações nos sinais de saciedade, desequilíbrios na diversidade e composição da microbiota intestinal, ou com os efeitos pró-inflamatórios e pró-oxidantes dos alimentos ultraprocessados.

Uma vez observados os seus efeitos, e explicada a sua plausibilidade a nível biológico, resta implementar medidas fiscais (impostos sobre bebidas açucaradas) e medidas regulatórias (limitar a exposição, sobretudo, de crianças e adolescentes a este tipo de produtos) que contrariam a propagação destes produtos.

Fonte O Globo

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