Sophie Charlotte ganhou vivência Gal na Bahia para filme

No primeiro capítulo da novela O Rebu, de 2014, da TV Globo, Sophie Charlotte mostrava ao público sua conexão com Gal Costa. Na trama, ela canta “Sua Estupidez”, composta por Roberto Carlos, mas que também ficou marcada pela voz da baiana. No ano seguinte, a atriz foi convidada pelo Rei para interpretar a canção em seu especial de fim de ano. Naquela noite, a semelhança do timbre deixou a própria Gal surpresa. Quatro anos depois, foi esse episódio que fez com que a cantora, que nos deixou em novembro passado, aceitasse que Sophie a interpretasse no cinema em Meu Nome é Gal, que estreia neste 12 de outubro.

“Sempre gostei de cantar”, revela Sophie, que fez aulas de canto na adolescência com o avô materno, que era cantor lírico. “Quando me preparei para O Rebu, ficava ouvindo a música na versão que Gal cantou em um programa chamado Ensaio. É um vídeo em preto e branco e ela usa um chapéu que tapa seus olhos. Antes de ela cantar, Tom Zé declama um texto sobre quem ela era de um jeito tão poético e apaixonado que eu me encantei”, lembra.

A admiração pela artista vem da infância, passada em Hamburgo, na Alemanha, sua cidade natal – ela é filha de mãe alemã e pai brasileiro. “Tínhamos muitos vinis em casa, entre eles o Tropical e o Baby Gal. Hoje tenho uma coleção maior e ainda autografada”, celebra. “Mas a verdade é que sempre associei Gal a brasilidade, um lugar que juntava cheiro de manga, as lembranças das brincadeiras com meus primos nas férias no Brasil, a língua, o calor e aquela voz. Quando eu estava na Alemanha a gente não falava português, só alemão, mas a música que tocava era dessa turma: Gal, Bethânia, Caetano e Milton”.

Foto: Marina Zabenzi (Thinkers Mgmt) para Marie Claire

Antes das aulas de canto, o primeiro contato de Sophie com a arte foi por meio da dança. “Aos seis anos apresentei meu primeiro espetáculo de balé numa espécie de teatro municipal de Hamburgo. Quando acabamos de dançar, começou um barulho alto e pensei: ‘Isso é chuva?’. Foi ali que entendi que eram aplausos. Foi uma revelação”, conta ela aos risos e com brilho nos olhos.

Filha do cabeleireiro paraense José Mário da Silva e da bióloga alemã Renate Elisabeth Charlotte Wolf, Sophie cresceu com diversas influências artísticas, tanto em Hamburgo quanto no Brasil, para onde se mudou aos 8 anos. “Meus pais sempre me apresentaram filmes clássicos, musicais e grandes interpretações, então cresci com o desejo de ser atriz. Era um sonho de todos, porque eu gostava e eles me incentivavam. Na altura dos meus cinco anos eu já falava que queria fazer balé para ser atriz. Tudo sempre foi voltado para este ofício. É um pedaço grande da minha existência.”

Hoje, aos 34, a artista reconhece o privilégio de viver o que sempre sonhou. “Me sustento pelo reconhecimento do meu ofício e ele me dá prazer”, diz, seguindo os passos de sua ídola. Morta aos 77 anos, Gal Costa encontrou na música sua fonte de vitalidade – era o que a “alimentava” e a fazia “uma pessoa melhor”, em suas palavras para revista Marie Claire numa entrevista em setembro de 2022.

“Acredito que manifestamos nossos desejos, e eu sempre quis expressar o meu ofício em todas as suas amplitudes. A música me marca tanto. Cantar por meio de Gal é como se ela também me desse um pouco a minha voz de presente, pois aprendi com o cantar dela. Ela foi minha mestre”, diz. Sophie sempre foi fã da cantora, por isso a tocou tanto a oportunidade de protagonizar o filme Meu Nome é Gal, dirigido por Dandara Ferreira e Lô Politi.

Foto: Marina Zabenzi (Thinkers Mgmt) para Marie Claire

“Quando liguei para falar do projeto com Sophie, a resposta foi: ‘quando a gente começa?'”, lembra Dandara. “Enquanto isso, Gal ficou ainda mais feliz, pois muitas cantoras, de alguma maneira, tentavam imitá-la, mas ela nos disse que a única pessoa que tinha o mesmo timbre que o dela era Sophie – que nem era cantora – e isso era especial”, conta Lô.

A atriz mergulhou de cabeça no projeto durante os quatro anos de produção. Aprendeu a tocar violão e estudou música com Cézar Mendes, compositor baiano que já escreveu para Gal. Em janeiro de 2019, embarcou com parte da equipe para a Bahia para ter uma “vivência Gal”. “Ela foi em festa de largo, foi no Gantois, que era o terreiro de candomblé que Gal frequentava, aproximou-se da cultura baiana”, detalha Dandara. E Lô completa: “Sophie foi sensorial, assim como Gal. Menos cérebro e mais corpo, sensação e emoção. Ela experimentou tudo o que pode do universo de Gal, com uma dedicação grande, além de ouvir sem parar todos os discos da cantora”.

Sophie criou sua própria Gal, aquela de 20 anos, dos anos 1970, que chega ao Rio de Janeiro para se dedicar à carreira e se transforma de Maria da Graça, a Gracinha, em Gal Costa. De corpo e voz. “Sophie trouxe um corpo da Gal que me emocionou durante uma cena. Não é que você olha para ela e vê Gal na aparência física, é na sua grandeza como atriz”, diz Dandara. Na época, as pessoas cobravam da baiana um discurso político, assim como os manifestados por Gil e Caetano, mas seu posicionamento era seu próprio corpo.

Foto: Marina Zabenzi (Thinkers Mgmt) para Marie Claire

“Na estética de Gal estava o enfrentamento da ditadura. Seu comportamento tinha a sensualidade e autoafirmação como mulher”, conta a diretora. Em cima dos palcos, Gal sempre rompeu padrões, como quando cantou com o seio à mostra a canção “Brasil”, de Cazuza, em 1994, e recebeu “aplausos tímidos”, como informaram os jornais da época. Nas telas, Sophie fez algo similar quando viveu uma prostituta no filme Serra Pelada, de 2013, e no longa O Rio do Desejo, em que protagoniza cenas quentes com três irmãos. Em Meu Nome é Gal vemos uma mistura das artistas.

O que fica de Gal para Sophie é saudade. Mas elas se encontram ainda na doçura, na suavidade e na característica de serem reservadas em sua vida pessoal. “Guardo uma parte da minha privacidade para mim e para os meus porque acredito nesse espaço de um mistério bom, que deixa os personagens ocuparem esse lugar. E, curiosamente, Gal também se colocava através do trabalho dela e de tudo que ela alcançou musicalmente, e não tinha interesse de se colocar tão aberta com relação ao seu dia a dia”, conta Sophie, que acumula cerca de 3 milhões de seguidores apenas no Instagram.

Apesar da quantidade elevada de pessoas de olho em sua vida online, a artista sente haver na rede social um diálogo livre e sem qualquer obrigatoriedade. “Tenho muita consideração, carinho e respeito por tudo que eu recebo dos meus fãs. Tem notícia que só fico sabendo porque acompanho meu fã clube. Compartilho o que é relevante para meu trabalho, uma flor do meu jardim, um convite que quero fazer às pessoas e questões sociais sobre as quais acredito ser importante dar minha opinião”, diz.

As raras publicações sobre sua vida íntima mostram momentos ao lado do marido – Daniel de Oliveira, com quem é casada há quase nove anos –, em celebrações de aniversário de amigos e festivais de música e com o filho Otto, de 7 anos. Quando mais nova, Sophie costumava se importar mais com as manchetes que saíam a seu respeito. Agora, a perspectiva é outra: “Tem a pessoa que eu sou na minha vida privada, tem o meu trabalho e tem essa narrativa que é uma junção de percepções”.

O casamento e a maternidade, as maiores curiosidades dos fãs, Sophie coloca como lugares tão comuns como os de qualquer outra pessoa. “Minha vida e meu casamento têm fases e mudanças. Você só lê que a vida das pessoas é maravilhosa nas redes sociais e fica: ‘Que horrível é minha vida’. Mas todo mundo tem suas complexidades. Como qualquer casal, a gente está dialogando com um novo entendimento do que é ser um par depois de tanto tempo juntos. Eu mudei, Daniel mudou, Otto nasceu, cresceu e a gente vai repensando a relação”, conta.

Essas fases também foram sentidas por Sophie na sua relação com o filho. “Sou apaixonada pelo Otto. Quando ele nasceu senti um amor imediato e muito forte, mas o que me surpreendeu não foi sentir esse amor, foi me apaixonar aos pouquinhos. Essa paixão vai crescendo cada vez que eu o conheço mais. E é um privilégio que tenho, graças a um monte de coisas, poder acompanhar isso”, reflete.

Sophie mantém a ideia de um segundo filho em pausa. “Não sei se vou ter mais. Tem as questões biológicas, mas estou feliz com o Otto e meus enteados. Engravidei com 26 e não foi planejado, planejar isso agora não está encaixando”, revela. “Tive o privilégio de ficar com o Otto até ele ter oito meses e voltar com uma personagem incrível para a TV. Pude amamentar exclusivamente, depois fiz a introdução alimentar com calma, então foi suave. Não sei se eu ia querer um esquema diferente. Não é uma decisão fechada, só algo em que não estou pensando agora.”

Para além da vida íntima, o presente de Sophie compreende também a preparação para o filme Virgínia e Adelaide, de Jorge Furtado e Yasmin Thayná, baseado no encontro real entre Virgínia Leone Bicudo e Adelaide Koch. “Minha personagem é Adelaide, uma psicanalista alemã judia que foge da Alemanha nazista e vem morar no Brasil e funda com outros psicanalistas a primeira sociedade psicanalítica paulista. Nesses primeiros anos no país, ela encontra Virgínia, uma socióloga que a procura e pede para fazer análise e, assim, é formada a primeira psicanalista no Brasil. Uma mulher negra”, conta a atriz.

Ela ainda pode ser vista na reprise de Todas as Flores, novela criada e escrita por João Emanuel Carneiro com direção artística de Carlos Araujo, no ar na TV Globo depois de se consagrar no Globoplay. Sophie também se prepara para começar a gravar em dezembro o remake da novela Renascer, de Benedito Ruy Barbosa, que foi ao ar em 1993 e volta com roteiro de Bruno Luperi. E, em 10 de novembro, ela estreia o longa The Killer, de David Fincher, na Netflix, com Michel Fassbender e Tilda Swinton no elenco. Quando foi exibida no Festival de Veneza, em setembro, a produção foi aplaudida de pé por sete minutos.

A internacionalização da carreira de Sophie não foi planejada. “Um trabalho provoca o outro. São os personagens interessantes que me importam. Aceito as oportunidades que me instigam”, diz. Como participante da greve de atores de Hollywood – que pede por revisão dos contratos, atualização de ganhos, regulamentações de streaming e limite do uso de Inteligência Artificial -, ela não pode comentar sobre o longa com o diretor do clássico Clube da Luta, de 1999, mas engrossa o coro que pede mudanças neste cenário.

“Acredito na necessidade da nossa cota de telas, em primeiro lugar. E apoio o recebimento dos direitos conexos pelos artistas das plataformas digitais. São pontos fundamentais e iniciais para a gente dialogar sobre o nosso ofício para que ele possa ser sustentável para quem vive disso”, afirma. A cota de tela e os direitos autorais já são reconhecidos em alguns países, como Argentina, Espanha e França, mas ainda não no Brasil. “Sou otimista em relação ao governo atual. Saímos de um obscurantismo. Votei no Lula, acredito nesse governo e ainda temos muito a conquistar e resolver. A cultura, que não tinha nem ministério há um tempo, está se reestruturando”, diz ela.

Esses são desejos de Sophie para o presente. Já seu futuro inclui atuar em outras frentes do audiovisual. “Ainda não consegui escrever as ideias que tenho, mas tenho algumas”, conta. O ano intenso de trabalho da artista é equilibrado com terapia, atividade física e alguns hobbies: “Faço análise regularmente, aula de violão, drenagem – que é meu momento mais ‘luxo’ – e exercícios, e quando o tempo está bom eu corro na areia e aproveito para dar um mergulho e meditar. Cozinho, costuro, cuido do jardim, faço as compras da casa. A parte da vida normal me ajuda a me organizar emocionalmente”, conta.

Entre um trabalho e outro, a normalidade a coloca no eixo. Sophie aprendeu a se escutar mais com a ajuda da análise – seu compromisso seguinte depois desta entrevista, aliás –, que procurou depois de viver algumas situações de estafa. “Mas sempre tentei ficar atenta aos sinais antes de chegar ao extremo. Tento buscar o equilíbrio”, diz. A espiritualidade também é amparo, mesmo que sem religião definida: “É uma colcha de retalhos de crenças, mas sou devota de Nossa Senhora, fui criada na religião católica, porém me liguei com as de matriz africana por conta da proximidade de Salvador e do contato com o universo da Gal”.

A ligação de Sophie é com o mistério. “Você pode dar vários nomes, mas essa junção de fé e espiritualidade é muito importante para mim. Acendo velas, tomo banhos de ervas, gosto dos meus rituais”, diz Sophie. É como cantou Gal: “Espírito é o que enfim resulta de corpo, alma, feitos: cantar”.

Fotos: Marina Zabenzi (Thinkers Mgmt)
Direção criativa: Estela Padilha
Direção de moda: Larissa Lucchese
Beleza: Daniel Hernandez (MLages), com produtos Dior Beauty
Produção executiva: Vandeca Zimmermann
Assistente de beleza: Ricardo Leal
Assistentes de fotografia: Mariana Gabetta, Igor Kalinouski
Camareira: Linda Gomes
Tratamento de imagem: Thiago Auge
Agradecimento: Tivoli Mofarrej São Paulo Hotel

Fonte Revista Marie Claire

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