Foto: João da Mata/BBC News Brasil
“Achei que a gente fosse ficar quatro ou cinco dias fora de casa até a água baixar, como foi nas outras enchentes. Aí, a gente ia voltar pra casa, limpar e ir pra dentro de novo. Mas não sobrou nada. Não consigo nem localizar a minha casa”.
Foi chorando que a vendedora Maria Estela de Almeida, de 47 anos, relatou à BBC News Brasil sua frustração ao perceber que o fim do que ela chama de pesadelo parece longe.
Ela vivia em uma casa confortável no bairro de Moinhos, no município de Estrela, no Vale do Taquari, interior do Rio Grande do Sul.
A residência foi levada pela enxurrada. Maria Estela agora vive em uma barraca de lona de caminhão com mais seis pessoas de sua família em uma rua da cidade.
Ela sintetiza o drama de uma tragédia cujas dimensões ainda não foram exatamente estimadas, mas que preocupa por mais um desdobramento importante: sua longa duração.
O chamado “marco zero” das inundações no Rio Grande do Sul deste ano aconteceu no dia 30 de abril. Milhares de pessoas perderam suas casas e tiveram que se alojar em abrigos improvisados, casas de parentes ou, como Maria Estela, na rua. Pelo menos 162 pessoas morreram.
No entanto, diferentemente do que aconteceu em enchentes anteriores, em muitas áreas o retorno à normalidade está sendo mais lento que o esperado, prolongando a crise humanitária no Estado. Em outras, simplesmente não poderá acontecer.
Três semanas depois, segundo os dados do governo do Rio Grande do Sul da noite de quarta-feira (22/5), ainda há mais de 580 mil pessoas desalojadas e quase 70 mil em abrigos.
O prolongamento da crise, segundo os relatos de vítimas das inundações, voluntários e agentes públicos, vem aumentando a tensão em abrigos, gerando crises de ansiedade e desgastando os milhares de voluntários.
Além disso, o temor é de que, com o passar do tempo, haja cada vez menos voluntários ajudando, apesar do grande número de desabrigados.
Tensão elevada
O secretário de Transparência e Controladoria de Porto Alegre, Carlos Fett Paiva Neto, disse à BBC News Brasil que o prolongamento da permanência de desalojados em abrigos já vem gerando tensões.
Ele é o representante da prefeitura da capital no abrigo que funciona em um ginásio do Grêmio Náutico União, um dos clubes mais tradicionais de Porto Alegre.
“É óbvio que não temos a capacidade de reproduzir o mesmo ambiente de autonomia e liberdade que eles tinham em suas casas. No espaço confinado existem regras de convivência”, disse à BBC News Brasil.
A imposição de regras ou o aperto delas nos últimos dias, resultado do aumento das tensões, estaria criando insatisfação entre os desabrigados.
“Um exemplo (do aumento da tensão) acontece na distribuição de roupas. No início, a gente dava uma certa liberdade e eles mesmos iam escolhendo o que queriam. Com o passar do tempo, a gente passou a regrar isso. Apertamos tanto que chegou no limite e eles estão reclamando que havia excesso no início e que agora há falta (de roupas)”, disse.
O motorista Márcio dos Santos Pacheco, de 42 anos, que viu sua casa na área central de Porto Alegre ser alagada, está no abrigo gerido por Paiva Neto.
Quando conversou com a reportagem da BBC News Brasil, na semana passada, já estava confinado no local havia duas semanas. Com o passar dos dias, segundo ele, o nível de tensão vai ficando tangível.
Márcio disse que a ansiedade resultante do confinamento prolongado se manifesta em seu corpo durante o sono.
“Tu não dorme um sono tranquilo como o que a gente tem quando está em casa sabendo que está seguro. Aqui, tudo é novo. A gente tem que se readequar para sobreviver”, disse à BBC News Brasil.
Pacheco conta que já presenciou momentos tensos entre desabrigados e voluntários, como disputa por roupas.
“Uma pessoa estava recebendo roupas de um voluntário. Neste momento, apareceu outra reclamando e dizendo que queria as mesmas roupas e as mesmas condições […] O voluntário falou: ‘Não, eu já te dei'”.
Barraca de lona
Para Maria Estela, no município de Estrela, a situação é crítica.
No dia da enchente (30/4), ela tentou se alojar em um abrigo, mas eles também estavam sendo severamente atingidos pela chuva. Sua família, então, montou uma barraca de lona de caminhão para abrigar sete pessoas, incluindo três filhos.
A barraca tem formato triangular e o chão é coberto com pallets (estrado de madeira) e alguns cobertores velhos. Nas laterais, há fardos de comida e água doada, sacos de roupas e outros mantimentos.
Estacas e uma lona preta em uma elevação do terreno fazem as vezes de banheiro, mas apenas para urinar.
“Se a gente quiser fazer outra coisa, precisamos ir no banheiro da igreja. Isso, quando ela está aberta”, diz.
A hora do banho é ainda pior, ela disse.
“A gente toma no escuro, de bacia, de pote. Sem chuveiro e sem nada de conforto.”
Antes do início do inverno e enquanto a população luta contra os efeitos das enchentes, o Rio Grande do Sul já registrou frio intenso.
No domingo (19/05), quando conversou com a BBC News Brasil, Maria Estela já estava naquelas condições havia 19 dias.
Cansada, ela diz que precisou de ajuda profissional para lidar com ansiedade.
“A minha (ansiedade) (eu lido) é com medicação. A dos meus filhos… eu levo eles para a minha irmã, tiro um pouco daqui ou dou uns livrinhos para eles pintarem. Não tem internet no celular, então nem dá para usar. Alguns voluntários trazem joguinhos e coisas pra gente pintar”, disse.
‘Eles só querem ir para casa’
Maria Estela, assim como outros desabrigados com os quais a BBC News Brasil conversou nos últimos dias, afirmou que um dos principais disparadores de sua ansiedade é a incerteza sobre quando ou se ela conseguirá retomar sua vida normal.
“Os filhos menores não entendem o que é enchente. Eles só querem ir para casa. Os maiores já sabem que a casa foi embora. Eles querem saber onde é que vão estudar. O colégio não existe mais. A gente não tem essa resposta. Como vamos responder?”, disse.
Em Porto Alegre, Márcio dos Santos Pacheco vive situação parecida: também não sabe quando poderá retornar à sua casa, alagada pelas águas do Lago Guaíba.
O psicólogo Diogo Lichtemann, que trabalha como voluntário no abrigo onde Pacheco está, explica que o confinamento prolongado pode aumentar os níveis de estresse dos desabrigados.
Isso aconteceria porque, apesar de sentirem um alívio ao serem resgatados das inundações em um primeiro momento, os desalojados, em geral, querem retomar suas vidas o mais rápido possível.
Diante da incerteza sobre quando isso será possível, comportamentos irritadiços ou até mesmo depressivos são esperados, segundo o psicólogo.
“Se você falar com as pessoas com quem eu converso, elas vão relatar que não aguentam mais estar aqui e que elas querem ir para as suas casas ou alguma outra casa (disponível)”, disse o psicólogo à BBC News Brasil.
Um dos principais pontos de tensão são as diferentes normas adotadas em cada abrigo.
“As pessoas estão ansiosas, querendo sair porque há regras que elas não gostam e às quais elas não estão acostumadas. Ninguém quer estar aqui por vontade própria.”
Como a maioria dos abrigos funciona em ambientes privados como salões paroquiais, igrejas de diferentes denominações e clubes, as regras variam de acordo com a administração destes espaços.
Em Estrela, por exemplo, um abrigo mantido pela prefeitura tem como regra apagar as luzes às 22h e impedir a entrada de pessoas que aparentam terem consumido bebidas alcoólicas.
Em outro, mantido por uma instituição católica em Porto Alegre, há um toque de recolher a partir das 22h.
Os coordenadores destes espaços afirmam que as regras são uma forma de fornecer segurança para os desabrigados, mas admitem que, muitas vezes, elas colidem com a liberdade que a maioria deles tinha quando ainda viviam em suas casas.
Fadiga dos voluntários
O prolongamento da crise também vem afetando os voluntários, segundo Lichtemann.
“Em relação aos voluntários, o que mais pode nos angustiar é não ter uma previsão. Essa situação vai se estender por um bom tempo e ninguém tem condições de dizer por quanto tempo”.
Lichtemann acredita que haverá uma redução no número de voluntários nas próximas semanas em função do retorno de parte deles às suas atividades. Ele também cita a “fadiga” como um dos motivos para essa queda.
“Na área da saúde, vai haver uma redução. Acho que por duas razões. Uma é pela fadiga, óbvio, e outra pela também pela natureza do atendimento que estamos prestando”, disse.
O psicólogo detalha que, inicialmente, buscavam as pessoas que chegavam aos abrigos para saber se precisavam de alguma coisa. Agora, atuam em esquema de plantão, à espera de que as pessoas os procurem. Essa mudança, segundo ele, diminui a quantidade de voluntários necessários para atendimentos.
O que dizem as autoridades
Autoridades estaduais e municipais alegam estarem atentas à fadiga tanto das vítimas quanto dos voluntários.
Na sexta-feira (17/5), o governo do Rio Grande do Sul anunciou a criação de “cidades temporárias” para abrigar desalojados pelas enchentes. A ideia é removê-los dos abrigos à medida que essas estruturas começarem a ficar prontas.
As “cidades temporárias” seriam instalações de metal, plástico e madeira em pelo menos três pontos do Estado com capacidade para abrigar até 10 mil pessoas.
Ainda não há prazo para que as primeiras unidades entrem em funcionamento.
O governo federal também anunciou um plano para a compra de residências para as vítimas das enchentes, mas os detalhes de como ele funcionaria ainda não foram divulgados.
Responsável pelo programa de voluntários criado pela prefeitura da capital gaúcha, o secretário municipal de Administração de Porto Alegre, André Barbosa, admite que o prolongamento da crise está afetando tanto as vítimas das inundações quanto quem tenta ajudá-las.
“A gente tem uma equipe de voluntários que está atendendo essas pessoas e a angústia principal é saber o que vai acontecer depois, se eles vão conseguir recuperar as coisas perdidas”, disse à BBC News Brasil.
Ele diz que a prefeitura da capital já detectou uma redução na quantidade de voluntários disponíveis e abriu um edital para o cadastramento de novas equipes.
“Com o passar do tempo, a gente notou um desinteresse natural porque as pessoas começaram a retomar a normalidade das suas vidas. Mas quando notamos essa queda, abrimos um cadastro e, em menos de três dias, conseguimos outros 700 voluntários. Felizmente, não vamos precisar chamar todos”, disse.
Barbosa, no entanto, teme que a disponibilidade de voluntários não seja a mesma caso a crise se prolongue ainda mais.
“Se você me perguntar se eu vou ter essa mesma quantidade de voluntários em 30 dias, aí eu acho que vamos ter um problema a médio e longo prazo”, disse.
Procurado, o secretário de Desenvolvimento Social do Rio Grande do Sul, Beto Fantinel, também admitiu que houve uma redução na quantidade de voluntários disponíveis. Ele disse que o governo firmou uma parceria com uma plataforma digital para manter um fluxo estável de voluntários.
“Existe uma diminuição da força do voluntariado por conta da dificuldade de continuarem colaborando. Temos uma estratégia e avançamos com a plataforma Transforma Brasil para a mobilização de voluntariado”, disse o secretário em áudio encaminhado à BBC News Brasil.