Unidos da Tijuca
Estou aqui para contar a minha história…
1 – Nascente. Olho d’água… Útero do mundo. Numa cabaça mergulhada no fundo do rio turvo, um espelho reflete as múltiplas formas da vida. As águas do rio Oxum fazem nascer, germinar a semente. Grande fertilidade banha as terras negras de Ilexá… Essas águas fluem como itans que se revelam e que se entrelaçam como correnteza que me leva ao meu destino.
2 – Um dia, Oxum emergiu do fundo dessas águas, nadou até a margem, onde desejou ardentemente um belo caçador chamado Erinlé. Famoso por sua beleza bruta, Odé só se interessava pelas mulheres das matas, rejeitava as das águas. Mas ela o amou tanto que quis ter um filho com ele. Consultou Ifá para saber como conquistá-lo. Os búzios revelaram que, para alcançá-lo, Oxum deveria ser selvagem como as folhas e exalar o aroma das fêmeas dos bichos da floresta. Sob uma camada de lama, mel e ervas aromáticas, a rainha se tornou a caça perfeita para o abate. A magia assim se deu: o rio desaguou de tanto desejo, que eu, peixinho, mergulhei no ventre de minha mãe. E, celebrado pelos espíritos superiores do Orun, nasci no Aiyê para cumprir o que, em suas mandalas, determinou o oráculo sagrado.
3 – Pelos veios da savana, ancestrais se levantaram como grandiosos elefantes e me trouxeram marfins como presente. As mais poderosas sacerdotisas da terra me ofertaram deliciosas comidas: axoxô de meu pai e omolokum de minha mãe, mas também muitos lelês adoçados com mel silvestre. E, ao som de ilús bem tocados no ritmo ijexá, toda a gente dançava, reconhecendo que sou de nobre linhagem.
4 – Sim, o grande príncipe herdeiro da raça dos meus pais! Tenho a sensibilidade e a inteligência de minha mãe e a bravura e a esperteza de meu pai. Caçador e pescador, sou minha própria natureza. Eu sou o úmido e o seco, o líquido e o sólido. Represento a neblina que esconde os limites entre os reinos, a areia molhada, o cílio das matas, a floresta, a margem e o fundo dos rios. Sou o único capaz de reunir todos os mundos. Sou o equilíbrio entre os homens e as mulheres. Assim tenho tudo, pois príncipe sou!
5 – E, como recomendam os velhos sábios africanos, foi preciso toda uma aldeia para me educar. Havia um grande mundo a ser desbravado para além dos limites de Ilexá. Recebi de Exu o poder da transformação. Com Ogum, aprendi a forjar minhas armas e armaduras. Com Oyá, entendi como manejar a espada afiada. Obaluayê me orientou como curar as feridas. Ossaiyn me ensinou que, sem as folhas, é impossível seguir. Ewá me deu o poder da camuflagem. Tudo isso me fez merecer o meu nome: Ologun-Edé, O Senhor das Guerras de Edé!
6 – Quando houve a guerra entre o Império de Oyó e Daomé, Ilexá foi atingida e, por isso, ainda jovem, me encantei. Os inimigos queriam desafiar a riqueza e a prosperidade de nosso povo, humilhar nossa altivez e realeza, controlar as águas com as quais nos nutríamos, escravizar nossos corpos, vender nossa liberdade como objetos úteis.
7 – Para superar isso tudo, nos refugiamos em Abeokutá, onde, sob a luz da Lua, Iemanjá, a senhora do rio que corre para o mar, nos deu na foz uma estratégia de sobrevivência: na presença dos demais peixes, uma tropa de cavalos-marinhos. Entre os jovens encantados, cavalgamos o enorme oceano em direção à outra margem do espanto atlântico. Adeus, Ilobu, das savanas e planícies férteis de meu pai Erinlé! Adeus, Oxogbô, do rio caudaloso de minha mãe Oxum!
8 – Aportamos nas praias brasileiras. Novo Mundo, povo estranho conhecemos. Mas quem pode partir as águas e contar as folhas? Não seremos repartidos pela escravidão! E, quando rufaram os ilús dos primeiros candomblés, renasci na cabeça dos Reis e Rainhas de um Príncipe Coroado. Pois eu sou o segredo, filho do Rei da Nação Ketu e da Rainha da Nação Ijexá. Quando as mulheres clamavam a minha mãe pela esperança de ter filhos, riquezas e sucesso nos negócios, eu estava. Quando os homens clamavam ao meu pai por liberdade, prosperidade e fartura, eu também estava.
9 – E assim sou cultuado nos axés do Brasil, terra e água que deram lugar ao meu reino. Com Severiano, ergui, na Bahia, a casa do Kalé Bokum. Com Zezito, minha força chegou ao Rio de Janeiro, onde desembarquei com a Corte Real Ijexá. Estou presente em todos aqueles que reconhecem que sou “santo menino que velho respeita”, como falou Mãe Menininha do Gantois. Zelo pela minha nobreza e pela do meu povo, através dos ensinamentos que levam meus filhos e filhas ao melhor destino.
10 – Estou nos assentamentos, idés, otás e ibás que sustentam a vida dos que me seguem. Ergam seus ofás, abebés e balanças! Busquem comigo a solução das causas impossíveis! Depois, façam festa! Saiam em cortejo ao toque de afoxés! Celebrem estar vivos! Curtam, dos velhos às crianças, a jovialidade que emana do meu mistério. Exibam seus axés em praça pública! Contem minha história! E reconheçam o destino que o velho Orunmilá me determinou.
11 – Eu sou a força da juventude no tempo. Estou no presente e daqui olho para o futuro. Estou no passado e de lá resgato as tradições. Estou no futuro em que meu legado é imortal! Eu nunca morro. Eu sou o horizonte para as novas gerações, a continuidade da vida. Eu sou o sopro que toca os ouvidos de cada um, quando inspiro seus desejos.
12 – Também estou no desafio aos limites. Neste mundo de afrontas, sou o combate à humilhação das pessoas subalternizadas, empobrecidas e constrangidas simplesmente por existirem. Ousadia é meu nome contra os que negam uma vida plena e digna aos jovens pretos.
13 – Jovens, sejam altivos como o pavão, exibindo sua nobreza. Sejam versáteis como o camaleão, afrontando e, baphônicos, existindo. Sejam leves como os pequenos pássaros, cantando para serem ouvidos. Sejam espertos como a lebre, dançando, encantando e quebrando tudo. Sejam ferozes como o leopardo, lutando imponentes contra os que caçam suas vidas e as descartam.
14 – Pois isso é ser cria: ser honrado pelos “meus consagrados” mais velhos por onde eu passo. Sou o orgulho dos que já nos deixaram e a esperança para o dia de quem ainda vai chegar.
15 – Amarelo ouro, azul-pavão. Cumpro o meu destino pousado no alto de suas casas. Envolvo o meu Morro do Borel no aconchego das minhas asas. Abro minha cauda em leque como um lindo milagre de Oxalá.
16 – E assim me ordenou Orunmilá: “Enquanto cresceres, entre o céu e a terra, entre a mata e o rio, entre a África e o Brasil, entre a comunidade do Morro do Borel e a Marquês de Sapucaí, serás grande e imortal no pavilhão de uma escola de samba, que te mostra ao mundo inteiro, no giro da porta-bandeira e no bailar do mestre-sala, espalhando o teu axé”.
Bradem comigo, confirmando em Benin: Eu sou a Tijuca! Eu sou Logun-Edé!
Ore Iye Iye Osun!
Ara unse! Ara unse kòke Odé Erinlé!
Loci, Loci Logun!
Enredo: Logun-Edé: “santo menino que velho respeita”
Presidente: Fernando Horta
Direção de Carnaval: Fernando Costa
Carnavalesco: Edson Pereira
Enredistas: Mateus Pranto e Rodrigo Hilário.
Consultores: Osmar Igbodê e Raphael Homem.
Texto: Edson Pereira, Mateus Pranto, Rodrigo Hilário, Osmar Igbodê e Raphael Homem.
Fotos: Rafael Arantes
ASCOM
Geissa Evaristo