O filme do Oscar que deveria ser tema de aula

O filme ” O diabo veste Prada” é frequentemente citado por alunos de Jornalismo como uma das inspirações para escolher a profissão. Ainda que não seja um filme sobre a prática jornalística, o cotidiano glamouroso de uma revista de moda é, por vezes, o suficiente para fisgar os aspirantes à profissão. Algo semelhante pode acontecer em ” Anatomia de uma Queda” (2023), longa da diretora Justine Triet que é um verdadeiro banquete para quem sonha em estudar Direito – ou que já ingressou na graduação.

Classificado como um thriller jurídico, o filme ganhou cinco indicações ao Oscars 2024: melhor filme, melhor direção, melhor atriz (para a protagonista Sandra Hüller), melhor roteiro e melhor edição. E não é para menos. Com uma premissa simples, a história retrata, ao longo de um ano, o julgamento de uma mulher acerca da morte – acidental ou não – de seu marido no chalé do casal.

Enquanto a primeira metade do longa situa o espectador no ocorrido e dá algumas fichas para fazer suas apostas iniciais, é na segunda parte que a parafernália jurídica completa aparece e o questionamento acerca da inocência da esposa se torna mais forte.

Certo dia, em um chalé isolado nas montanhas francesas, Samuel Maleski (Samuel Theis), o marido francês, está escutando música tão alto que sua esposa no andar debaixo, a escritora alemã Sandra Voyter, pede para remarcar a entrevista que concedia para uma estudante interessada em seu trabalho.

Momentos depois, o filho do casal, Daniel (Milo Machado Graner), que tem a visão parcialmente comprometida, volta de uma caminhada com seu cão-guia e encontra o corpo sem vida de Samuel estirado sobre a neve em frente à casa.

Sandra era a única no local além de Samuel, o que lhe coloca como a principal suspeita e levanta duas teses sobre a morte: foi acidental ou criminosa? Samuel pode ter caído; pode ter se jogado; pode ter passado mal e se desequilibrado na varanda. Na contramão, Sandra pode ter empurrado o marido; pode ter golpeado-o com um objeto forte o suficiente para desequilibrá-lo; pode ter matado o esposo e depois jogado seu corpo pela varanda para parecer suicídio.

De ambos os lados, as hipóteses são coerentes.

E é nesta dicotomia que o filme se desenrola. A perspectiva que guia a história, no entanto, é a de Sandra. A acompanhamos enquanto recebe os policiais e investigadores na casa, vemos os primeiro depoimentos, a contratação de um advogado – amigo de longa data que nutre uma paixão por ela -, e até mesmo sua relação com o filho monitorada por uma funcionária da Justiça.

Mas “Anatomia de uma Queda” não é um mistério do tipo ” Capitu traiu ou não traiu Bentinho?”. Ainda que acompanhemos a trajetória de Sandra no tribunal – afinal é a principal suspeita e também esposa da vítima -, a narrativa não é parcial e nem compra seu lado da história. Conforme o filme avança, vamos naturalmente conhecendo mais características de Samuel e da relação que os dois tinham. Além de acompanharmos cenas focadas somente em Daniel, o filho, conforme ele mesmo também vai tentando juntar as peças deste quebra cabeça delicado.

Deleite jurídico

Conforme o próprio título indica, “Anatomia de uma queda” disseca todos os fatores envolvidos na morte de Samuel. Como se colocado em um microscópio, o ocorrido é imaginado de diferentes ângulos, com diferentes abordagens e com diferentes objetivos. Na segunda metade, quando acompanhamos o julgamento da esposa um ano após a morte, é como se estivéssemos dentro do tribunal – mas o tribunal é uma arena de show e estamos sentados no melhor lugar da área VIP.

Acompanhamos as engrenagens dos advogados, os depoimentos da ré e das testemunhas como se estivéssemos também frente a frente ao juiz – uma mulher, por sinal. O passado de Sandra e Samuel é dissecado pelos profissionais ao passo que detalhes de vida íntima de ambos são trazidos à tona: de traições a uso de medicamentos controlados. Uma orquestra regida pelos advogados dos dois lados que tentam de tudo para chegar a uma conclusão para o mistério.

O filme dispõe de um realismo tão brutal que é fácil esquecer que estamos assistindo a uma produção encenada e gravada. Cenas longas, às vezes com a ausência de uma trilha sonora, e enquadramentos que ora são amplos e ora detalhados constroem, ao longo das 2h30 de duração, uma verdadeira aula para quem sonha em viver do Direito. Assim como “O diabo veste Prada” faz com jornalistas, é impossível não sair da sessão ao menos curioso sobre o mundo da Justiça.

Fonte Terra

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