Há um silêncio em torno do luto parental dentro das empresas. Os departamentos de RH ou de Diversidade e Inclusão demonstram pouco entendimento sobre quais direitos devem garantir a seus funcionários nesses casos.
O mapeamento “Bem-Estar Parental nas Empresas” (Filhos no Currículo em parceria com Infojobs, 2023), aponta que 85% dos pais e mães passam ou já passaram por situações desafiadoras na parentalidade (a exemplo do luto gestacional, depressão pós-parto, gravidez de risco, processos de fertilização, crianças com deficiência, entre outras situações). No estudo, 68% dos respondentes também afirmam que a sua empresa não fornece informações e experiências voltadas para questões de parentalidades.
“O mercado de trabalho já é enviesado em relação a parentalidade, mesmo em casos em que tudo sai exatamente como o esperado. Considerando que 8 em cada 10 pais e mães irão experimentar esse processo com desafios, é preciso chamar as empresas para falar sobre esse tema tão invisibilizado dentro do ambiente de trabalho”, afirma Michelle Levy, CEO da Filhos no Currículo, consultoria de transformação cultural que busca tornar empresas lugares melhores para profissionais com filhos trabalharem.
Políticas parentais para um tema invisibilizado
Segundo Michelle, a pergunta que precisa ser feita é: as empresas têm políticas para pensar sobre esse assunto? “A legislação trabalhista não atende, por exemplo, um pai que tem uma perda gestacional. Então, as empresas têm a oportunidade de cuidar do tema ainda que não haja legislação. Elas podem inovar, estar à frente no cuidado da saúde dos seus colaboradores”, explica.
Para ela, é crucial que as empresas tenham uma política de licença parental que preveja direitos em situações de perda gestacional, e nos casos de famílias de UTI. “Isso envolve, além da implementação das políticas, um treinamento para as lideranças e para as próprias equipes saberem lidar com esse assunto”, frisa.
O que diz a Lei
A consultora em Direito Parental da Filhos no Currículo, Bianca Carelli, esclarece que segundo o artigo 395 da CLT, as mães que passam por uma perda gestacional têm direito ao afastamento médico por duas semanas, sem prejuízo do salário. A maioria desconhece esse direito e muitas vezes volta a trabalhar no dia seguinte. O procedimento recomendado pela especialista é enviar para o RH da empresa o atestado médico, com o código CID que confirma a perda. Essa mãe ainda tem o direito de ter resguardada a sua intimidade, se assim ela desejar. Ou seja, poderá se afastar por licença médica sem que as lideranças e demais colegas de trabalho fiquem cientes do motivo.
Quando a perda gestacional acontece após a 24ª semana, já pode ser considerada um parto e há o direito ao período integral da licença-maternidade de 120 dias corridos, ou até 180 dias corridos, nos casos das empresas que possuem licenças estendidas.
Existem situações limítrofes (quando a gestação é interrompida em torno da 24ª semana), onde a equipe médica é quem poderá caracterizar o evento como um parto ou como uma perda gestacional. É muito importante que a equipe médica tenha uma conversa com os pais e entenda qual é o desejo deles: se a mãe está pronta para voltar 15 dias depois, ou se prefere tirar uma licença maior.
Outros pontos além da idade gestacional, como o peso do bebê no ultrassom, ou o comprimento “céfalo-caudal”, também podem ser usados como critérios para definir se a mãe passou por um parto ou não. “Nem todos os médicos sabem disso, nem todos os médicos têm esse cuidado, mas é importante em situações dramáticas como essa, que a equipe médica busque conversar com a família para entender qual é a melhor solução e caracterização desse evento”, propõe a advogada.
Existe uma outra particularidade, explica Bianca, que é o caso das chamadas “mães de UTI”. Quando o bebê nasce e depois vem a falecer, a mãe também tem direito a todo o período de licença-maternidade. Porém, esses dias de licença-maternidade só devem começar a ser contabilizados quando terminar o período de internação, seja da mãe ou do bebê, o que ocorrer por último. Durante a internação, esse período da licença não é computado, e se o bebê vier a falecer, a partir desse momento ela tem direito a todo o período de licença maternidade.
Havia muita dúvida quanto a contagem do prazo da licença maternidade quando a mãe e/ou o bebê precisam ficar internados na UTI neonatal, mas o STF definiu que esse período deve correr apenas após o fim da internação. “Nesses momentos é muito difícil pedir ajuda, e também buscar assessoria jurídica, mas isso pode ser determinante para que as coisas sejam minimamente, e dentro das possibilidades, mais leves para quem está atravessando esse processo”, destaca Bianca.
Vale lembrar que essas regras se aplicam a quem trabalha com vínculo de emprego. Para quem é servidor público, por exemplo, as regras podem mudar de acordo com a vinculação do servidor a Federação, ao Estado ou aos Municípios, que podem ter regras próprias diferentes.
Liderança com repertório
A publicitária Gabrielli dos Santos (38 anos), e o engenheiro de software Sérgio Araújo (39 anos) tiveram Alice, que nasceu prematura e viveu por 86 dias na UTI. Sérgio planejou tirar uma licença médica nos dias possíveis e pedir para desfrutar da licença paternidade somente quando a filha estivesse em casa. No entanto, foi liberado de forma integral pela empresa onde trabalhava para acompanhar a família no hospital, sem nem precisar dar entrada em um pedido formal: “Sérgio, vai e volta quando você puder”, foi o posicionamento dos líderes.
Quando sua filha faleceu, a empresa arcou com 100% dos gastos funerários e também tratou de todos os trâmites burocráticos em nome do colaborador. No dia do enterro, uma Van cheia de colegas da equipe chegou para dar apoio à família.
“Em nenhum momento tive medo de perder o emprego ou receio de lidar com o gestor. Minha liderança direta e a alta liderança da empresa sabiam muito bem lidar com a situação. E tudo isso contribuiu para que a nossa família passasse pelo luto. Se a empresa tem essa cultura de acolhimento, o gestor também tem espaço para ser humano”, conta Sérgio.
“Para as pessoas, falar da perda de um bebê é constrangedor. Elas não sabem lidar. Até a equipe do hospital, no dia do falecimento dela, não sabia lidar. Mesmo sendo um ambiente comum disso acontecer, a equipe se desestrutura inteira. Imagina então as empresas? Por isso elas tem que se movimentar para uma capacitação das equipes, porque aquele funcionário precisa de amor, atenção e carinho”, frisa Gabrielli.
“Sabemos que nosso caso é atípico, pois encontramos lideranças com repertório de uma cultura de apoio. Eu acredito que as empresas deveriam investir mais na preparação das lideranças. Esse é o tipo de ação e de política que repercute positivamente para a marca, de dentro para fora, pois comunica os valores, se conecta com as pessoas, diferencia a empresa no mercado… É uma política de verdade”, completa.
A história de Gabrielli e de outros pais e mães poderá ser conhecida a fundo na 5º temporada do videocast da Filhos no Currículo, denominada “Parentalidade fora do roteiro”, que será lançada no próximo dia 24 de outubro, no Spotify da Filhos no Currículo e no canal de YouTube da Mustela, marca parceira do videocast. Todos os episódios também contam com um quadro de orientações jurídicas, onde os ouvintes conhecem alguns direitos parentais com a Dra. Bianca Carelli.
Sobre a Filhos no Currículo:
Consultoria de transformação cultural especialista na criação de programas de parentalidade corporativos. O foco é construir uma cultura de bem-estar parental nas empresas por meio de lideranças mais bem preparadas, times empáticos e políticas internas que sejam acolhedoras e inclusivas para quem concilia filhos e carreira. Atua a partir dos pilares de sensibilização, consultoria e engajamento, em temas como inteligência emocional, equidade de gênero e parentalidade. Dialogam com pais, mães, lideranças, gestores de RH e Diversidade sobre essas pautas. Já realizaram ações em empresas como Pepsico, B3, Ambev, PwC, Gerdau, Cielo, Nubank, MM360, Ambev e Grupo Raia Drogasil.
Gabriela Henriques