À medida que a narrativa visual abraça novos recursos tecnológicos, vale a pena lembrar que algumas das mais antigas e ricas táticas de ilusão — desde a Renascença — tiveram origem no palco. Nos últimos 20 anos, muitos cenários espacialmente abrangentes foram concebidos (alguns, em lápis e papel) pela artista britânica Es Devlin, cenógrafa de Adele e do U2 no show inaugural do Sphere, o novo palco gigantesco de Las Vegas, com cúpula da tela em LED, ano passado.
Também em 2023, um outdoor de Devlin criado para Beyoncé foi uma espécie de realização de “2001: Uma Odisseia no Espaço”. Recuado no centro da tela, um enorme disco abrigava elementos estratégicos do vídeo de três horas da cantora — bolas de discoteca ou um útero de líquido amniótico, por exemplo. Antes dessa abertura em constante mudança, Beyoncé emergia como Cristo saindo do túmulo.
A imagem de Beyoncé e vários outros projetos para estádios, teatros e instituições de arte estão atualmente documentados em “An Atlas of Es Devlin”, uma exposição com muitos textos no Cooper Hewitt, Smithsonian Design Museum, em Nova York, que incorpora cerca de 300 objetos do arquivo da designer e do seu estúdio. Esses desenhos e estudos, exibidos ao lado de modelos das instalações finais fabricadas para esta exposição, mostram como suas produções complexas, muitas vezes arquitetônicas, tomam forma.
Trata-se da primeira retrospectiva do trabalho de Devlin e permite um vislumbre, durante nossa atual mania por realidade aumentada e salas imersivas, de até onde você pode levar um espetáculo.
As origens são bastante humildes: o set de Devlin para a banda Wire em 2003 — sua incursão do design teatral pelos shows — colocou cada membro do quarteto em um cubículo separado, coberto por uma tela de gaze e projeções com vídeo pré-gravado de suas bocas e leituras de eletrocardiograma.
Desde então, os orçamentos aumentaram com o tempo e a fama. O palco da britânica para o show do intervalo do Super Bowl de 2022 em Los Angeles — com Dr. Dre, Mary J. Blige e outros luminares do hip-hop — replicou um quarteirão da cidade vizinha de Compton.
Na exposição atual — que é montada em uma espécie de laboratório branco e sem janelas, instalado, quase ironicamente, na mansão vitoriana de tijolos e painéis de madeira de Andrew Carnegie —, o palco do Super Bowl é ilustrado por um modelo nítido do tamanho e formato de uma bola de couro, com sua arquitetura e grade urbana iluminada por dentro como uma lanterna de abóbora.
Não há como negar: o outdoor de Beyoncé não se traduz em miniatura, nem o enorme deslizamento de língua de Miley Cyrus em sua turnê de 2014. A recriação não parece ser o objetivo, no entanto. Esses modelos visam a ilustrar como os conceitos são gerados em larga escala.
Embora o vídeo e a iluminação não sejam estranhos na Cooper Hewitt, e embora o foyer da mostra tenha uma sala de imersão para o momento atual (uma instalação chamada “Studio”, onde projeções registradas com precisão reproduzem uma réplica em escala da oficina de Devlin), você descobrirá que a maior parte de “An Atlas of Es Devlin” lembra uma exibição de desenho e escultura da velha escola: fileiras de pequenos objetos que sugerem objetos da vida real, com esboços em papel oferecendo comentários.
É deliberadamente antiquado, existencialmente estranho — e fascinante. Uma grande parede reúne cerca de 200 desenhos de figuras e cadernos de desenho de Devlin desde a adolescência e seu tempo na Central Saint Martins, em Londres. No contexto de tal megafuturismo, há uma ironia: cada uma dos elaborados conceitos de Devlin “começa com uma linha em um pedaço de papel.”
Impulsionando esse tema está um catálogo extravagante com quase mil páginas e contendo milhares de palavras da artista, ela mesma uma escritora clara e generosa, que forneceu o extenso texto de parede da mostra.
Fonte Jornal O Globo